31 ago A Morte e a Morte de Padre Florêncio
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Sento para escrever, como de costume, e olho no celular a notícia de que Padre Florêncio morreu. Que lástima! Morreu meu confessor. Aliás, o preferido.
Não conseguia sentir vergonha em contar meus problemas perante aquele senhor compreensivo e seguro do que dizia. Meu terno guardador de segredos… Sempre de bermuda, camisola listrada e chinelo… Olhos fascinantes… Diz-se que o confessor é como o próprio Jesus perdoando os pecados. Que alegria Jesus teve!
Meu pai comentou sobre o filme que emprestara a ele. O vídeo era “Cinema Paradiso”, obra-prima de produção italiana. Também havia o vídeo com imagens da Itália que ele tanto gostava.
Já ouvia de sua fama quando era colegial e sabia das histórias por colegas que estudavam no Diocesano. Já na faculdade, no centro de evangelização, me aconselharam a confessar com ele. Achei aquilo muito estranho, eu não me confessava desde os 10 anos.
“Ele é um homem muito sábio. Vá lá para você ver!”. Cheguei no imponente prédio e perguntei onde ficava sua sala. A atendente me respondeu e cheguei ao seu misterioso escritório, incrustado no histórico laboratório de química. Na parede, fotos de ex-alunos queridos em momentos de confraternização, frascos de tudo um pouco, livros e mais livros.
No computador, conversas com sua parente pelo Skype. Era simples e carismático, sempre com um sorriso no rosto. Devo ter me confessado duas ou três vezes, o que se revelou suficiente para que ele me desse uma direção espiritual.
Lembro-me da última confissão, vagamente… Perguntado se conhecia o exorcista-chefe do Vaticano ele fez uma cara séria. Perguntado sobre se o inferno era real ele disse “É eterno, minha filha. Eterno!”.
Afora as perguntas intimistas, que me deixaram encabulada, a confissão terminou bem e eu ria depois do que ele me perguntava. “Sua alma está limpa. Agora quero um abraço…”.
Abracei-o e papéis da impressora caíram no chão. Um desastre, como ele mesmo observou.
Um dia antes de sua morte, eu tive uma aula na faculdade sobre o existencialismo de Soren Kiekergaard e sobre a morte. “Chega, professora! Este assunto está desagradável!”, a turma reclamou.
O pai do existencialismo falava que somos condenados a ser livres, mas temos a prisão da responsabilidade das escolhas. Só existiam, decerto, a morte e a angústia, coisas inevitáveis.
“A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”. Lembrei também dessa frase de Epicuro, de uma certa aula de filosofia.
Às vezes, a gente chora pelo fato da morte simplesmente existir. “Ah! A morte!”. Essa infeliz intrusa, penetra da festa da vida. É revoltante não poder voltar no tempo, rever certas coisas. A morte tem sua “beleza”, fria, gélida, indiferente, simples…
Deixei para terminar o texto depois de seu velório…
Diz Sêneca em seu livro Aprendendo a viver: “devemos estar preparados antes para a morte do que para a vida. A vida é suficientemente fecunda, mas nós estamos sempre ávidos de meios para viver e nos parece que sempre nos falta alguma coisa. Não os anos, nem os dias, mas o espírito é que nos diz se vivemos o suficiente”.
Ora, esse espírito inquebrantável, vívido, lúcido, que guiou várias pessoas, foi o que carimbou sua existência. Tia Lilia falou durante a missa: “Ele batizou quase todos os meus filhos. E tinha uma frase que dizia muito ‘a vida é um relâmpago, ainda que breve’”.
Concordo. Se a vida é um relâmpago, então ele foi uma estrela-guia para muita gente. Hoje, tem seu lugar merecido no céu.
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