Adiós jornal

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Papai ontem sentou-se à mesa muito pensativo, filosofando sobre o fim do jornal.Até começou a contar quantos jornais tinha na época dele:

-Eram doze.Hoje só tem “O Globo”.É uma pena né.O jornal vai acabar.Daqui a pouco vai ser tudo digital.Queria morrer lendo meu jornal.

Papai sentava-se debaixo da mangueira da nossa casa antiga religiosamente nos domingos de manhã. Sempre dava a sessão infantil do jornal para eu ler.

O jardim era bem amplo e tínhamos uma mangueira enorme , que por sorte ainda está lá.As mangas pareciam cachos de uvas enormes quando chegava na época da colheita.Lia seu jornal e o vento espalhava no jardim as folhas.E geralmente era eu quem as recolhia.

Ontem estávamos numa típica sexta à noite, comendo sushi, e um vídeo de 94 não me deixava mentir.Lá se estava papai com sua cadeira de macarrão, seu bom jornal e os cabelos ainda pretos.Nós, de pijamas encomendados, brincando com os filhotinhos.

Ainda hoje é assim.

Ele costuma ler religiosamente o jornal do dia.Acha espetacular quando a notícia sai no portal e depois na folha.O fiel escudeirto Tobby do seu lado, no sofá.Eu nunca fui lá muito fã de ler jornal, apesar de apreciar sempre a parte de cultura.Pulava sempre a política e o policial.

O ato de ler com paciência, todo o ritual do acariciar as notícias com o tato me lembra que nunca gostei de ler livros on-line.Também gosto de sentir o papel, dormir com o livro nos braços às vezes, quando o sono pega.

Eu o admiro:em toda a sua vida nunca precisou de terapia pesada como eu.Com o passar do tempo, começou a ler livros de Rubem Alves sobre envelhecer. Começou a indagar em voz alta sobre a finitude das coisas, o passar irrefreável do tempo, o olhar perdido em alguma lembrança.

Não se preocupe, pai.Até onde resistirem, estarão juntos do mesmo jeito:

O jornal, a mangueira e o senhor.

25/04/2020

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