Corações aquecidos

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-Hasta la revolucion, siempre!

Tio Valdemar nos recebeu no aeroporto já bradando seu bordão e nas horas vagas falando mal do presidente Bolsonaro.Era novembro de 2019, a tão sonhada viagem para Polônia, Alemanha e Holanda.
Papai, filho de ex-militar, era fascinado por assuntos de guerra, junto com seus irmãos.
Entre uma risonha tia Aliana, um cômico e distraído tio Valdemar,os comentários de meu primo Lucas, e as ironias de papai,minha expectativa era a melhor possível.
De Munique para Cracóvia me senti muito mal e quase não me aguentava em pé.
Já no aeroporto, ao pegar as malas, a piada de Lucas sobre o assédio no carro me aqueceu e confortou, pois eu havia tido uma indigestão mais cedo.
Papai brincou:
-Se mandassem eu ficar só de cueca no raio-x, veriam que belo mancebo eu sou!
Ri e vi que a risada me fez bem.A van nos deixou perto do hotel e ainda tivemos que puxar nossas malas até o hall, debaixo de chuva.
Ao chegar, me deslumbro com a praça à noite, toda iluminada e vibrante.Um encanto.O hotel era bem na praça e era pequeno e encantador.Tinha abóboras reais na decoração, pois o halloween tinha acabado de passar.Subi, tomei um banho e desci para jantar no café do hotel com mamãe.Estava morta de sono, e apaguei assim que cheguei ao quarto.

Acordei renovada e o café da manhã era altamente estiloso, digno de foto.No dia seguinte foi city-tour com Rafael, nosso guia brasileiro.

Na praça enorme do nosso hotel tinha o primeiro shopping center moderno.

À tarde, quando chegamos, fui no salão fazer as unhas e me perdi na volta.Esqueci que o hotel era na praça, do lado da loja Benneton.Peguei um taxi que tinha me levado à praça mas não conseguia reconhecer o hotel.Uma senhora loira e muito benevolente me ajudou e chamou um segundo taxi, até a mesma praça.

Até que uma mensagem de mamãe me salvou e achei o hotel, finalmente,cheguei ao quarto, para alívio de vovó!
No dia seguinte era dia de ir à Auchwitz.A van já estava esperando de manhã, eu não queria ir, mas mamãe em uma última tentativa entrou no quarto e me convenceu.
A estrada no outono era linda, o interior com seus vilarejos e fábricas muito pitoresco.
Mas nada pode lhe preparar para aquilo.
De longe avistei a famosa placa:Arbeit Mach Freit, que significa  ” O trabalho liberta”.
Demos as mãos e
Rezamos um pai nosso na entrada.
O público era em grande parte estudantil.
O sofrimento e dor dali dava mais calafrios que os 5 graus.
Os alojamentos hoje são museus com fotos e reconstituições da época.
Vi o famoso traje azul com branco dos judeus.A energia era  forte e um cheiro de dor transpassava o vidro que os guardava.Cheiro de desespero, de angústia, perdição.
Pensei: desculpe.Desculpe por vocês terem conhecido o pior da humanidade.
Os cabelos e  tranças , os óculos, malas e até muletas.
Tudo o que o tempo conservou com aroma de dor.

No campo de  Birkenau,já com o sol se pondo, caminhei com mamãe de mãos dadas rumo à saída, e imaginei que nada poderia ser pior que um campo daqueles.
Lembrei naquele momento de uma cena até cômica:ela,em Teresina, careca por conta da quimioterapia, vestindo uma calça de listras branco e azul, idêntica a dos judeus.Minha mãe, careca, sem unhas, chorando resignada em sua casa quentinha e acolhedora me pareceu uma tragédia.Imaginar aquelas mães também carecas e sem seus filhos nem calor, nem cobertas, minimizou minha dor.

Aquela máquina de desespero oriunda de uma nação com o ego ferido da primeira guerra deixou a sensação de que ser feliz atualmente é um modo de dizer para os judeus do campo que seu sofrimento não foi em vão.Que seu sofrimento fez redimensionar o meu.
Assim que cheguei em Teresina,conversei com um amigo espírita :
-Depois que cheguei de lá não dá vontade de acreditar em nada…
-O que importa são as almas.o corpo passa -ele respondeu.
Dizem que Deus dá o frio conforme o cobertor.
Não sei.Não havia cobertor, nem aquecedor, nem luz à noite para aqueles pobres judeus.
Havia um fio de esperança que a morte ceifou.
Uma mãe ver o filho de 3 anos indo para a câmera de gás sem motivo é pior que a morte.
Por que morremos em vida quando o sentido nos é tirado.
Morremos em vida sem o coração aquecido pelo amor dos que nos amam.
E hoje, sei que minha vida é boa, vale a pena e tenho condição de ajudar os outros.
Não sei a vida em geral,mas a minha é assim.
Viagem chegou ao fim e meu sentimento é de pura gratidão.Cheguei com o coração aquecido de tanta alegria e descobertas.
Vi que o ódio pode construir muros,jogar bombas em cidades,
matar milhões em campos de concentração.
Mas só o amor  reconstrói e tudo o que ele engloba.A coragem, superação.
Vejo países agora modernos, alegres, vibrantes e é difícil imaginar tanta dor e sofrimento nos anos  há pouco menos de 100 anos.
Não é sua religião,cor, origem ou profissão que lhe faz melhor mas o amor, respeito e caridade para o próximo.
O amor é que nos faz mais humanos e cura feridas.
Só o amor vale a pena.   6/02/2020

 

 

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