Viver, cozinhar, existir

 

 

Posso resumir minha experiência gastronômica a um aprendizado forçado “do básico do básico”, em Madrid, para que eu não passasse fome (e nem tivesse muitos pratos para lavar). Também posso dizer da alegria que tive quando aprendi a ligar o forno ou a fazer uma omelete ou um simples pavê. Não importa. Cozinhar, para mim, sempre foi um motivo de alegria. Lembro, na antiga biblioteca da família, de um livro sobre culinária do qual eu “devorava” a parte das sobremesas francesas. Lembro-me dos bolinhos de chuva que minha avó fez em certo réveillon. Enfim, todo mundo tem suas memórias gastronômicas peculiares…

O filme Julie e Julia, baseado no livro homônimo de Julie Powell, mostra uma funcionária de um serviço de ajuda às vítimas do 11 de setembro que se vê em seu emprego estressante e decide dar uma sacudida na rotina com o livro de Julia Child, famosa cozinheira dos Estados Unidos. A protagonista decide, por um ano, testar todas as receitas do livro de Julia e, com isso, acaba descobrindo sua vocação e fazendo sucesso. O filme mostra também como Julia começou sua carreira, abrindo mão de ser simplesmente a mulher de um diplomata para ir à busca daquilo que a fazia sentir-se viva.

Vi, em certo livro de enfermagem psiquiátrica, que as crises existenciais ocorrem quando há desvios comportamentais, quando a pessoa não está em contato consigo mesma ou com o ambiente. Quem é alienado fica só ou desorientado. A pessoa então tem que se focar em si e achar um sentido para ela mesma. É verdade que crises existenciais não são estudadas de agora: as teorias humanistas abrangem o Humanismo, a Fenomenologia (de Edmund Husserl) e o Existencialismo. O Existencialismo insiste na necessidade de aprovação subjetiva da verdade. O irresponsável é não se responsabilizar pela existência, não ter clareza do que pode acontecer  e culpar o outro.

O filme mostra a busca da verdadeira vocação, fala de superação, reviravoltas, persistência pelo objetivo e, claro, muitas receitas. Você não descobre sua profissão numa sala fria, numa pergunta de uma profissional com voz indiferente ou em um teste batido de recursos humanos em um dia tedioso. Você a descobre quando já chegou no limite da sua existência. Pode ser numa fila de banco, numa quarta-feira patética, folheando sua revista preferida pela décima vez, etc.

Quando escrevo, por exemplo, me renovo, me desfaço, nasço e me redescubro. O texto me delata, me desnuda, me encobre, me disfarça. Paulo Coelho chama isso de “o instante mágico”, aquele momento que tudo pode mudar e você se sente capaz de tudo.

O filme desperta a vontade de sair da mesmice do dia a dia e se aventurar em alguma receita saborosa. A lição que tiro é a de que vale a pena sentir-se viva e que a vida, apesar de todos os pormenores, tem sua graça e seus sabores.

 

 

 

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